“Redescobrir” e o dia da consciência negra

Hoje é dia da consciência negra, feriado em muitas cidades brasileiras. Embora seja feriado aqui também em Niterói, pra mim não foi feriado, porque a greve fodeu o calendário da UFF e nós não tivemos direito a esse descanso, como não teremos direito ao feriado no dia da cidade, depois de amanhã.
Mas não é sobre a minha falta de folga no dia de hoje que eu quero escrever. Eu quero escrever sobre uma música, uma coincidência, uma coisa que ficou latejando na minha cabeça o dia inteiro.
Eu não sou negra. Na mistura da minha família, que me teve como resultado, tem sangue de índio e de europeu, mas (pelo menos até onde eu sei), não há sangue negro, pelo menos em umas 4 ou 5 gerações. Eu sou branca feito leite, cor que fica ainda mais evidente pela minha deliberada falta de disposição pra pegar sol.
Mesmo assim, eu comemoro o dia da consciência negra. E por quê? Porque eu sei reconhecer o preconceito e o sofrimento destes meus irmãos que carregam na pele as lembranças de uma época em que se tratava as pessoas “de cor” com diferença. Como se branco também não fosse uma cor!
É fato que eu não vivo na pele esse preconceito infeliz que insiste em se perpetuar nas sociedades. E, embora eu procure fazer a minha parte, sei que só a partir da conscientização de todos é que essas amarras do passado serão anuladas, e poderemos, enfim, seguir e, frente.
Passei o dia inteiro hoje pensando na força do negro – de maneira particular, é claro, na sociedade brasileira. A nossa cultura do samba, ou mesmo da capoeira, traz a marca da negritude em cada linha ou em cada jogo. Falando de samba, alguns me vieram à cabeça no dia de hoje: “Kizomba, festa da Raça” (Vila Isabel, 1988); “Liberdade, liberdade! Abre as Asas Sobre nós!” (Imperatriz Leopoldinense, 1989); e o mais recente “Você Semba de lá… que eu sambo de cá: o canto livre de Angola” (Vila Isabel, 2012). Eu não sou uma grande conhecedora de causa, e certamente o meu amigo Príncipe Regente seria capaz de listar muitos mais sambas que versam sobre o tema, mas foram esses três sambas que, especificamente, me acompanharam no dia de hoje, como que me lembrando o tempo todo de que não poderia deixar de prestar minha humilde homenagem aos tantos heróis (anônimos ou não) do dia a dia, que são obrigados a superar discriminações e preconceitos indiscriminados de tantos.
Coincidentemente, hoje chegaram às minhas mãos o CD e o DVD “Redescobrir”, em que a Maria Rita, cantora bacanuda, homenageia a rainha Elis Regina, sua mãe, e minha cantora favorita. Enquanto terminava de estudar meus textos de política externa brasileira (bolsista sofre), embalada pelo novo disco que agora faz parte da minha coleção, me lembrei da Mivó – sempre ela.
A Mivó é mesmo a minha grande referência em assuntos de música, de samba, de MPB. A Mivó me apresentou à Elis Regina; foi ela que me ensinou a ouvir e a apreciar a maior cantora que o Brasil já viu. E eu lembro, como se fosse hoje, como se ela ainda estivesse aqui do meu lado, da Mivó dizendo que o show “Saudades do Brasil” foi uma das coisas mais bonitas que ela já tinha visto na vida dela.
A Mivó me contava que, nesse show, “a Elis chorava preto, por conta do rímel, quando cantava ‘Atrás da Porta’”, e que terminava o show cantando “Redescobrir” rodeada de lindos negros(as) dançarinos(as) e cantores(as) que, junto com ela, emocionavam a todos que os assistiam àquela “brincadeira de roda“.
Infelizmente, não vi Elis ao vivo. Sou fã única e exclusivamente porque tive a sorte de ter a Mivó na minha vida pra me mostrar o legado maravilhoso que a pimentinha deixou. Tive a sorte da Mivó me dar, entre tantos presentes, um DVD da Elis em que “Redescobrir” é a última música.
“Redescobrir”, composição de Gonzaguinha, me faz pensar nessa negritude por conta da Elis. Ela, mulher branca, de cor branca como eu, que teve filhos brancos como eu, dava as mãos aos negros, que representavam ali todos os negros do Brasil, numa homenagem sensível.
Vinicius de Morais cantou que ele era o branco mais preto do Brasil, na linha direta de xangô. Saravá!
Nesse momento, a emoção já toma conta de mim de forma que não consigo mais traduzir os meus pensamentos em palavras. Fica registrada aqui, então, a minha homenagem e o meu reconhecimento pela força de quem luta contra as amarras que impedem que a “igualdade seja sempre a nossa voz“.

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